É possível salvar as almas sem se preocupar com os corpos?


Sabe aquela expressão "salvar almas"? Parece resumir tudo o que o cristianismo prega, né? Mas, na real, essa ideia pode ser bem perigosa se a gente não prestar atenção. Imagina uma fé que só se preocupa com o espírito, ignorando o que acontece com o corpo e o mundo ao nosso redor. Isso não só distorce o Evangelho, como também ajuda a manter as coisas ruins do jeito que estão.

A fé de verdade precisa enxergar o ser humano por inteiro: corpo e alma caminhando juntos. E a Igreja, seguindo os ensinamentos da Doutrina Social e se preocupando com os mais pobres, tem que lutar por uma vida digna para todos, aqui e agora.

A Bíblia e a Igreja sempre ensinaram que corpo e alma não se separam. São Paulo fala da ressurreição do corpo (1Cor 15), e o Catecismo diz que somos "unos" (CIC §362). Reduzir a salvação a uma conquista espiritual é negar que Jesus veio ao mundo e se fez carne. Como disse São João Crisóstomo: "Honre Cristo nos pobres; não adore seu corpo na igreja enquanto o negligencia faminto na rua".

Essa ideia de "salvar almas" cria uma divisão cruel: prega o céu enquanto fecha os olhos para a fome, gasta dinheiro em templos luxuosos e se cala diante da injustiça. Transforma a fé em um negócio, como se Deus fosse um contador de almas, e não um Pai que ouve o sofrimento dos filhos oprimidos (Ex 3,7).

A Doutrina Social da Igreja (DSI), desde o século XIX (Rerum Novarum), nos lembra que lutar por justiça social não é opcional, é parte fundamental do Evangelho. As alegrias e tristezas da humanidade são também as da Igreja (Gaudium et Spes). E a opção preferencial pelos pobres (Medellín), defendida pelo Papa Francisco, nos chama a priorizar quem mais sofre, porque Jesus se identificou com eles: "Tudo o que fizestes a um destes pequeninos, a mim o fizestes" (Mt 25,40).

Como falar de "salvação" para quem morre de fome ou violência? Santo Oscar Romero, arcebispo mártir de San Salvador (El Salvador), que deu a vida para defender os pobres, disse: "A glória de Deus é o pobre vivo". Sua morte mostra a diferença entre uma Igreja que vende milagres e uma Igreja que luta contra a opressão.

Muitas vezes, a ideia de "salvar almas" vira um mercado religioso. Cultos emocionantes "arrebatam" fiéis, e líderes vendem "graça" como mercadoria, ignorando os problemas do mundo (capitalismo, racismo, destruição ambiental). Essa lógica distorce o Evangelho: em vez de libertar, aprisiona; em vez de unir, divide.

Jesus foi claro: "Não podeis servir a Deus e ao dinheiro" (Lc 16,13). Sacramentos celebrados em altares de ouro, enquanto pessoas passam fome, viram uma piada da Eucaristia. Como escreveu Dorothy Day: "Nenhum homem pode ser considerado salvo enquanto viver em um barraco" em seu livro "Encontrei Deus através de seus pobres. Do ateísmo à fé: o meu caminho interior" (Livraria Editora Vaticana).

Os sacramentos não são rituais mágicos, mas gestos de rebeldia contra a desumanização:

 * Eucaristia: Lembrança da Paixão e luta contra a fome. Na Igreja primitiva, a partilha do pão incluía dividir os bens (At 2,44-45).

 * Batismo: Mergulho na morte do egoísmo e renascimento para a comunhão, onde "não há judeu nem grego, escravo ou livre" (Gl 3,28).

Celebrar a missa em um mundo tão desigual só faz sentido se a liturgia for acompanhada da luta por justiça.

Essa ideia de "salvar almas" separada do corpo é um erro grave. A fé verdadeira exige uma Igreja que se envolva com a realidade, que lute por:

 * Salários justos;

 * Fim do racismo;

 * Proteção da Amazônia e seus povos.

Como diz o Papa Francisco: "Não podemos mostrar-nos solidários com o mundo só rezando" (Fratelli Tutti). A salvação que Jesus prometeu é um banquete onde todos têm lugar (Lc 14,15-24). Se queremos "salvar almas", precisamos garantir que todos os corpos vivam com dignidade.

No final das contas, só haverá almas salvas se houver, primeiro, corpos libertos.

Comentários

  1. "Não podemos mostrar-nos solidários com o mundo só rezando" que lucidez da Sua Santidade, Francisco - e não poderia ser de outra maneira , é o que se espera de uma iluminada alma franciscana : acolher e lutar por justiça . Penso que o "multiplicar os pães" não fora milagre, apenas dividir .

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