A religião pode cegar tanto quanto pode libertar? Análise histórica e não teológica


Ao longo da história, a religião tem sido uma força paradoxal: enquanto em alguns contextos serviu como instrumento de dominação e segregação, em outros foi catalisadora de avanços sociais e culturais. Essa dualidade não reside na essência do sagrado, mas na forma como as estruturas de poder manipularam suas narrativas. Analisando exemplos históricos, é possível identificar como a fé tanto cegou sociedades a aceitarem opressões quanto libertou-as para construir legados humanistas.

A religião, quando institucionalizada, frequentemente legitimou hierarquias e justificou violências. Na Mesopotâmia, por exemplo, os governantes eram vistos como intermediários diretos dos deuses, consolidando um poder absoluto. Como apontam estudos, “o rei geralmente atuava como agente da divindade”, e questionar sua autoridade equivalia a desafiar o próprio sagrado. Esse mecanismo de controle perpetuou desigualdades, como na sociedade egípcia, onde a religião moldou até mesmo a arquitetura e as leis para reforçar a centralização faraônica.

Na Europa medieval, a Igreja Católica utilizou seu poder espiritual para silenciar dissidências. A Inquisição (séculos XII–XV) perseguiu hereges, mulheres acusadas de bruxaria e minorias, usando a fé como justificativa para torturas e execuções. A imposição de dogmas, como destacado por teóricos, transformou a religião em “um fenômeno social coercitivo”, onde a obediência era imposta pela ameaça de condenação eterna. No Brasil, a intolerância religiosa contra cultos afro-brasileiros, como o candomblé, persiste até hoje, reflexo de um passado colonial que associou tais práticas ao “mal”, conforme registrado em debates sobre a Lei nº 11.635/2007, que instituiu o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa.

Atualmente, cresce o fundamentalismo religioso amparado pelas tecnológicas ferramentas de comunicação, como a internet, demonstrando que os interesses do megacapitalismo mundial das big techs se utiliza da religião para ampliar o seu poder político e econômico.

Por outro lado, a religião também foi veículo para transformações positivas. Na Idade Média, os mosteiros cristãos preservaram manuscritos antigos e fundaram as primeiras universidades, como a de Bolonha (1088), tornando-se “reservatórios culturais e intelectuais” . A caridade religiosa, inspirada em preceitos como “amar ao próximo”, deu origem a hospitais e sistemas de assistência social, antecedentes diretos de instituições modernas como o SUS.

No segundo milênio cristão, Francisco de Assis, imitando Jesus Cristo, instituiu o pensamento de defesa da natureza dentro dos princípios religiosos do cristianismo, inaugurando o que hoje é chamado de Ecologia Integral.

Movimentos de resistência também se apoiaram na fé. O budismo, por exemplo, na Índia antiga, desafiava o sistema de castas ao pregar a igualdade espiritual. Já o cristianismo primitivo, embora posteriormente cooptado pelo Império Romano, inicialmente congregou escravos e marginalizados, oferecendo-lhes uma comunidade baseada na dignidade humana. Como observa Clifford Geertz, a religião pode ser um “sistema de símbolos que estabelece motivações poderosas”, capazes de unir grupos em torno de ideais emancipatórios.

A secularização, teorizada por Max Weber como o “desencantamento do mundo”, prometeu reduzir a influência religiosa nas estruturas de poder. No entanto, o século XXI testemunhou o ressurgimento de fundamentalismos, como o Estado Islâmico, que distorce textos sagrados do islamismo para legitimar terrorismo, e o neopentecostalismo protestante e católico, que no Brasil manipula política e religião para ampliar influência ideológica. Paralelamente, a religião segue sendo ferramenta de resistência: as comunidades indígenas latino-americanas, por exemplo, revitalizam tradições espirituais para defender seus territórios contra a exploração capitalista. A teologia da libertação, com teólogos católicos e protestantes, ensina a “evangélica opção preferencial pelos pobres”. O Papa Francisco tem se tornado um ícone da Ecologia Integral.

A religião, como produto humano, reflete as contradições de suas sociedades. Seu potencial para “cegar” ou “libertar” depende de quem detém seu controle e de como suas narrativas são instrumentalizadas. Como escreveu Marc Bloch, “tudo que o homem toca pode informar sobre ele” — inclusive sua espiritualidade. Cabe às sociedades modernas resgatar o aspecto ético das tradições religiosas, como a defesa da dignidade humana, enquanto rejeitam seu uso como arma de opressão. A história nos ensina que, quando a fé se alia à razão crítica, ela pode iluminar caminhos para a justiça; quando se entrega ao dogmatismo, torna-se sombra que obscurece a liberdade.

Levon Nascimento é professor de História e Sociologia, mestre em Estado, Governo e Políticas Públicas e doutorando em Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável

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