Ainda Estou Aqui: o Oscar que ilumina a memória e resiste ao esquecimento
A vitória do filme “Ainda Estou Aqui” no Oscar, como Melhor Filme Internacional, não é apenas uma conquista histórica para o cinema brasileiro. É um ato político. A obra, adaptada do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho de Eunice Paiva e do deputado Rubens Paiva, vítima emblemática da ditadura militar, resgata uma narrativa de dor, resistência e luta contra o apagamento. Num momento em que setores da extrema-direita brasileira tentam reescrever a história, negando os crimes da ditadura (1964-1985), o reconhecimento internacional do filme é um recado poderoso: a arte não se cala diante do fascismo.
A história do filme se entrelaça com a trajetória da família Paiva, cujo destino foi atravessado pelo golpe de 1964, financiado e apoiado pelos Estados Unidos. Como destacado pelo Brasil 247, o governo de João Goulart (Jango) foi derrubado não apenas por suas “reformas de base”, mas também por sua “política externa independente”, que desafiou a hegemonia norte-americana na América Latina. Rubens Paiva, deputado federal cassado e torturado até a morte em 1971, denunciou em vida a ingerência estrangeira: documentos revelam que ele alertou sobre “a participação dos Estados Unidos no golpe militar de 1964”, conforme registrado em investigações posteriores.
Sua esposa, Eunice Paiva, interpretada de forma sublime por Fernanda Torres, tornou-se símbolo de resistência. Após o desaparecimento do marido, ela enfrentou anos de perseguição, sem nunca aceitar a versão oficial de que Rubens havia “fugido”. Eunice manteve viva a chama da memória, recusando-se a assinar atestados de óbito falsos e exigindo respostas em um país onde a justiça estava sequestrada pela caserna. Fernanda Torres, ao incorporar Eunice, não apenas revive sua dignidade, mas também traduz para as telas a força silenciosa de quem enfrenta a máquina do terror de Estado sem perder a humanidade.
O filme chega em um contexto global onde discursos autoritários, revisionismos históricos e ataques à democracia ganham terreno. Como observa Jamil Chade, do UOL, o Oscar “manda um recado poderoso de defesa da democracia”, especialmente em um Brasil onde o legado da ditadura ainda assombra, seja na violência policial, seja na romantização do regime por parte de líderes da extrema-direita.
“Ainda Estou Aqui” desmonta a narrativa de que o golpe foi um “movimento redentor”. Ele expõe a violência sistemática, o silêncio cúmplice de setores da sociedade e a destruição de projetos progressistas. Marcelo Rubens Paiva, ao transformar sua história familiar em literatura e, posteriormente, em roteiro, cumpre um papel essencial: o de lembrar que por trás de cada número de mortos e desaparecidos há rostos, sonhos e famílias dilaceradas.
Eunice Paiva, retratada com maestria por Fernanda Torres, é a personificação da resistência que se recusa ao apagamento. Como destaca o Brasil 247, ela “não se curvou” mesmo após ser presa, perseguida e ter sua família vigiada. Sua luta ecoa hoje, quando sobreviventes do regime e jovens ativistas buscam justiça de transição, ainda inexistente no Brasil, onde torturadores seguem impunes e novas tentativas de golpe de Estado, como a de Bolsonaro e do 8 de janeiro, pedem anistia (perdão) antes mesmo de serem condenadas.
A homenagem do Oscar, portanto, não é apenas ao mérito artístico. É um reconhecimento de que a memória é um campo de batalha. Celebrar “Ainda Estou Aqui” é celebrar todos que, como Eunice, dizem: “Ainda estou aqui” — mesmo quando o Estado tenta apagar suas existências.
Em tempos de fake news e negacionismo, o filme lembra que a arte pode ser trincheira. A estatueta dourada ganha contornos de um grito: contra a ditadura do passado e contra os autoritarismos do presente. Que a luz projetada sobre Eunice Paiva e Fernanda Torres ilumine também os que hoje lutam por justiça — para que nunca mais se repita.
Como escreveu Marcelo Rubens Paiva, a dor de sua família “é a dor do Brasil”. E é essa dor, transformada em arte e resistência, que o mundo aplaude hoje. O Oscar não é só do cinema. É de todos que acreditam que a memória é o primeiro passo para a liberdade.
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Créditos da imagem ilustrativa: rede social Facebook.
Publicado originalmente em 03/03/2025 em https://professorlevon.home.blog/2025/03/03/ainda-estou-aqui-o-oscar-que-ilumina-a-memoria-e-resiste-ao-esquecimento/
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