Você acredita que vai vencer na vida sendo o chefe de si mesmo? A mentira do empreendedorismo meritocrático
A narrativa do “chefe de si mesmo”, de “vencer na vida” e da ideia de que “todo mundo tem as mesmas 24 horas” tem sido amplamente propagada como fórmula mágica para o sucesso. Essa visão, profundamente enraizada na propaganda neoliberal, engana a classe trabalhadora ao ocultar as desigualdades estruturais e promover um empreendedorismo sem garantias ou direitos trabalhistas. Essa é a armadilha: transformar o fracasso coletivo em responsabilidade individual, enquanto a exploração e a precarização se normalizam.
Quantas vezes já ouvimos que “todo mundo tem as mesmas 24 horas do dia”? Essa frase, aparentemente inofensiva, serve para mascarar as desigualdades reais do cotidiano. Enquanto alguns desfrutam de jornadas de trabalho dignas, transporte adequado, condições de saúde e apoio familiar, outros enfrentam longos deslocamentos, jornadas exaustivas e responsabilidades domésticas que duplicam a carga de trabalho. Como demonstrado em análises críticas sobre a lógica do tempo e da produtividade, essa simplificação ignora dados objetivos sobre deslocamentos e jornadas laborais desiguais – uma estratégia que legitima a ideia de que a produtividade é apenas uma questão de esforço individual.
A crença na meritocracia é, por si só, uma construção ideológica que tem servido para justificar a desigualdade. O “mito da meritocracia” faz com que se pense que o sucesso é fruto exclusivo do esforço pessoal, ignorando as barreiras estruturais e o acesso desigual a recursos como educação, rede de contatos e oportunidades de crescimento. Ao incentivar a ideia de que “vencer na vida” depende apenas de trabalhar mais e melhor, o sistema transfere para o indivíduo a culpa por sua estagnação, enquanto os responsáveis pela manutenção das estruturas de poder e privilégio permanecem intocados.
A ideia de ser “o chefe de si mesmo” é vendida como a rota para a liberdade e o sucesso. Contudo, esse discurso esconde uma realidade amarga: o empreendedorismo sem direitos trabalhistas é, na prática, uma armadilha que expõe o trabalhador à volatilidade do mercado, à ausência de proteção social e à responsabilidade integral pelos seus fracassos. Essa narrativa, presente em escolas, redes sociais e até mesmo em discursos religiosos, reforça uma cultura do individualismo que desvia a atenção da necessidade de coletividade e solidariedade. Ao invés de oferecer uma chance real de ascensão, ela cria um ambiente onde a exploração é naturalizada e os riscos são transferidos para o trabalhador sem qualquer rede de apoio.
Vivemos em uma sociedade que exalta a eficiência e o desempenho a qualquer custo. A “ideologia do desempenho” dita que o sucesso é medido pelo quanto se produz, levando o trabalhador a se autoexplorar incessantemente para provar seu valor. Essa lógica, que nega a importância de fatores como gênero, classe ou condições de vida, é uma arma ideológica que favorece os interesses do capital e legitima a precarização do trabalho. Em vez de promover uma verdadeira transformação social, ela transforma o sujeito em um empreendedor de si mesmo, responsável por todas as conquistas e, principalmente, por todos os fracassos.
Autores como Byung-Chul Han e Erich Fromm já alertavam para os perigos de uma sociedade que, em nome da eficiência, esgota o indivíduo. Han descreve como o excesso de positividade e a pressão por desempenho levam a uma “sociedade do cansaço”, onde a exaustão, o burnout e a depressão se tornam os preços da “liberdade” de ser o próprio chefe. Fromm, por sua vez, destacou que, no capitalismo avançado, o ser humano se torna uma partícula impessoal – avaliada apenas pelo seu “valor de mercado” – o que resulta em uma profunda alienação. A promessa de autonomia e liberdade se transforma em um pesadelo de autoexploração, onde o indivíduo se vê preso em uma rotina implacável, sem espaço para o questionamento ou para a verdadeira realização pessoal.
Ao incutir na mente da classe trabalhadora a ideia de que o sucesso depende unicamente do esforço individual, o discurso neoliberal oculta as forças estruturais que perpetuam a desigualdade. Essa “responsabilização” individual, propagada por meio de escolas, redes sociais e até igrejas, tem como finalidade desviar a atenção das políticas públicas e da necessidade de uma proteção social efetiva. Assim, os trabalhadores são levados a acreditar que o fracasso é fruto de sua falta de empenho, e não de um sistema que privilegia poucos em detrimento da maioria.
Diante desse cenário, é urgente repensar o valor da solidariedade e da organização coletiva. Em vez de internalizar o discurso de que “você é o único responsável pelo seu sucesso”, precisamos construir espaços de luta que priorizem direitos trabalhistas, justiça social e a redistribuição equitativa de oportunidades. É necessário questionar os discursos que transformam o empreendedorismo sem garantias em um ideal de vida e lutar por políticas públicas que protejam o trabalhador, promovendo uma verdadeira democratização do acesso a oportunidades.
A narrativa do “chefe de si mesmo” e da meritocracia neoliberal é uma construção ideológica que serve para mascarar a exploração e a precarização das relações de trabalho. Enquanto a propaganda capitalista exalta a eficiência individual e ignora as desigualdades estruturais, o trabalhador se vê condenado a uma eterna busca por um sucesso ilusório – um sucesso que, na verdade, é medido apenas pelos parâmetros definidos por uma elite privilegiada. É hora de romper com esse mito e reconhecer que a verdadeira transformação social só será possível quando a responsabilidade se compartilhar e o poder se distribuir de maneira equitativa. Repensar o empreendedorismo e resgatar o valor da coletividade é o primeiro passo para construir uma sociedade mais justa e humana.
Publicado originalmente em 24/02/2025 em https://professorlevon.home.blog/2025/02/24/voce-acredita-que-vai-vencer-na-vida-sendo-o-chefe-de-si-mesmo-a-mentira-do-empreendedorismo-meritocratico/
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